terça-feira, 5 de maio de 2009

Noite na Sé


A rua ainda escura, exceto pelos raios de luz lançados fracamente pelos postes, refletidos na humidade do asfalto, criando uma aura quase sobrenatural. O cheiro azedo de lixo, do esgoto, do podre por baixo dos papelões molhados. As paredes descascadas, inclinadas, quase chocando-se. Latas, plásticos, botas e mais sacolas. Lixo. Podridão.

Encolhendo-se, pela opressão do cenário, ela caminhava com pressa, segurando a bolsa junto ao corpo. Seus passos ecoavam e ela continuava a andar, rezando para que aquele monte de lixo não fosse um trapo de gente.

"Mas que droga de sandália!"

"chilépt! chilépt!"

É incrível como justamente quando não queremos fazer barulho, o fazemos.
Ela sobe a calçada, mas desce em seguida, arrependida, ao ver o tamanho daquele rato.

"Aaahhh!"

Pronto. Agora acordou o mundo! Com certeza aquilo no monte de papelão é um trapo de gente. Corre, corre, corre.

Segura a bolsa e corre?

E olha que a amiga, do vestido cortado, aquela da festa, lembra? Aquela que tem um dente de ouro... Nossa, tão brega isso! Ri. Lembro. Que tem ela? Olha que ela avisou: Vá de metrô.

É tão perto, quase ali, dá pra cortar pela ruela. É ou não é?

O trapo de gente está se levantando.

Olha quanta barba, olha quanto cabelo, olha quanto trapo nesse trapo de gente.

Corre, corre, corre.

"Volta aqui, minha dona!"

Eu heim!

"chilépt! chilépt!"

Droga de rato! Droga de sandália! Droga de dente de ouro!

Eu heim!

Ela vira a esquina, rezando para encontrar alguém. Lembra o nome de todos os santos. O trapo de gente atrás, mancando.

"Volta aqui minha dona!"

Eu heim!

Ela entra no primeiro ônibus que por sorte estava parando naquela esquina. Ufa! Essa foi por pouco.

"Volta aqui minha dona!" grita o trapo de gente, desistindo, enquanto o ônibus se vai e a mulher lhe mostra um dedo.

"A senhora deixou cair a bolsa!"




Guilherme Peace

Um comentário:

  1. Hahahaha muito bom.

    O mundo de hoje está tão perigoso que a gente nao se permite nem mais ver gestos de honestidade como a desse mendigo, já pensamos logo na pior possibilidade.

    Vi uma cena parecida uma vez na Paulista, só que era uma carteira e a mulher estava subindo no ônibus. Ela ainda chegou a pegar, mas nem chegou a olhar quem era o dono da voz que avisou: um mendigo maltrapilho e mal encarado, e possivelmente, drogado.

    Ótimo texto.

    Abçs!!!!

    http://blogpontotres.blogspot.com/

    Atualizado!

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