quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Onze anos americanos

Por Guilherme Peace, Patrícia Freire, Raron Moura e Lívia Nunes

Fatos que a antecederam


Crise “PontoCom”, ataque às Torres Gêmeas e ao Pentágono, redução dos juros, crescimento da economia, mercado “subprime”, “bolha imobiliária”...Esses são alguns acontecimentos marcantes dos últimos onze anos que mudaram a rotina americana e contribuíram para crise econômica de 2008 .

Como efeito do grande investimento no mundo da internet e das telecomunicações na década de 90, a economia estadunidense no ano 2000, passou por quebras, fechamentos e fusões de empresas do ramo. Na época, o Federal Reserve (Banco Central americano) respondeu com uma diminuição de 0,5 ponto na Prime Rate (taxa básica de juros americana) para controlar a situação. Com isso, o FED iniciava uma tendência de redução que levaria a economia americana, de um lado crescer fortemente no cenário mundial, e por outro, entrar numa longa crise que colocaria todo sistema financeiro risco.

A crise de 2000, denominada de “PontoCom” durou apenas até 2001, ano em que ocorre no dia 11 de Setembro o ataque às Torres Gêmeas e ao Pentágono nos Estados Unidos. Na primeira semana do atentado, o sentimento de insegurança provoca uma queda nas principais bolsas de valores americana e mundiais, o índice da Dow Jones bateu o recorde de queda de 14,3%, na Alemanha de 8,5%, em Londres de 5,7% e no Brasil de 9,2%. O Federal Reserve forneceu 300 bilhões de dólares para fomentar a liquidez (gerar circulação de capital), três dias após os ataques. A situação foi regularizada rapidamente.

Após o atentado, o Governo Bush começa o plano “Guerra ao Terror”. Gastos em duas guerras no Afeganistão e no Iraque levaram os Estados Unidos a um endividamento de US$ 14,6 trilhões nos de 2001 a 2011, cerca de 20% de toda a dívida do mundo.

Para estimular o crescimento da economia, o FED reduz ainda mais a taxa básica de juros, que em Dezembro de 2003, chega a 1%, e diminui as restrições para concessão de crédito. Antes, para realizar um financiamento ou empréstimo era exigido um índice cadastral de 620 e entrada de 20%, além da comprovação de renda, então se passa a exigir apenas 500 de índice cadastral e sem entrada O mercado imobiliário e hipotecário se aproveita da situação para construir e vender mais casas. Nesse período, comprar uma casa deixa de ser apenas necessidade, mas uma forma de investir dinheiro.

O americano que antes tinha dificuldade para realizar o sonho da casa própria, neste momento podia ter mais de uma. A partir da diminuição de juros e empréstimos fáceis, a ideia transmitida ao consumidor é que se ele pode receber determinado empréstimo ou financiamento, significa que é capaz de cumprir com as prestações. As empresas hipotecárias também se aproveitaram do bom momento para comprar emprestar, tendo os imóveis como garantia. Várias pessoas hipotecavam seus bens para pagar dívidas e consumir ainda mais, porque confiavam no mercado e na valorização do imóvel.

Com o crescimento da economia americana, mais bancos e outros fundos de investimento abrem os cofres para o setor “subprime” (clientes com baixa renda ou histórico ruim de crédito), com taxas mais altas para compensar o risco. Sem regulamentações estatais, títulos de dívidas são vendidos e repassados para diversas empresas, financiadoras, hipotecárias e bancos que buscam mais lucros em cima do mesmo imóvel. Esses títulos denominados lastreados são vendidos para diversas companhias das bolsas de valores do mundo.

A economia americana começa a ficar desfavorável, quando os clientes do setor “subprime” não conseguem arcar com as dívidas, sejam as prestações da casa ou empréstimos e assim, os bancos começam a ficar inadimplentes. Isso porque, com os altos gastos em Guerra, o FED foi obrigado a aumentar a taxa básica de juros. De 2004 para 2006, vai de 1% para 5,35%.

Devido ao acúmulo de inadimplências, milhares de americanos começam a perder suas casas. O “American Dream” começa a virar um pesadelo, tanto para os consumidores, quanto para as empresas imobiliárias, hipotecárias e os bancos. Outro fator que propiciou a crise americana foi a demora em perceber as consequências que os exageros nas transações imobiliárias traria para economia. Quando se percebeu que a maior parte dos consumidores não conseguiria mais arcar com os altos juros em cima das parcelas dos empréstimos, o montante de títulos lastreados não tinha mais valor mercadológico, eles já eram títulos podres (com alto risco de “default”).

Outra surpresa para o mercado americano, a desvalorização do imóvel. A dívida referente às casas financiadas e hipotecadas era muito mais alta que o seu valor comercial. Nesse cenário, começa o fator que levaria a crise imobiliária à crise financeira, a retração do crédito. Assim, a temida bolha imobiliária estoura e várias empresas abrem falência. A primeira, uma das 10 maiores no setor imobiliário americano, a American Home Mortgage (AHM) que pediu concordata e teve sua dívida repassada para outras empresas.


2007 e 2008: Os primeiros efeitos da crise


A crise imobiliária se torna uma crise financeira com conseqüências em todo o mundo, a partir da inadimplência dos clientes subprime. Os efeitos aparecem pouco a pouco em 2007 e se arrastam até o ápice da crise, em setembro de 2008.

Em abril de 2007, a New Century Financial, especializada em empréstimos subprime decreta falência, causando a demissão da metade dos funcionários. Suas dívidas foram repassadas a outros bancos e o mercado dos empréstimos de risco começa a entrar em colapso.

Após três meses, em julho, o quinto maior banco de investimentos dos EUA, Bear Stearns, diz que seus investidores não conseguirão resgatar o dinheiro de ações ligadas aos empréstimos hipotecários subprime. O valor líquido desses ativos caiu e já representava apenas 9% do inicial. Com a inadimplência, faltava dinheiro para o banco cobrir os créditos desses fundos de investimentos.

Agosto é o mês em que o tamanho da crise é revelado quando o banco de investimentos francês BNP Paribas informa aos seus investidores que eles também não conseguirão resgatar os investimentos. O banco congelou resgates, alegando dificuldades em avaliar os valores investidos.

Os países começam a desenvolver políticas financeiras para a recuperação do mercado. O Banco Central europeu investe 203 bilhões e 700 milhões de euros no setor bancário. Nos EUA, o Federal Reserve, interfere com um corte na taxa de juros para empréstimos aos bancos pela metade. Assim, eles teriam mais condições de se sustentar, mesmo com a inadimplência dos cientes.

Em 13 de setembro, o banco britânico Northern Rock pediu e recebeu ajuda financeira emergencial do banco central britânico e os correntistas retiraram mais de 2 bilhões de dólares no dia seguinte, em uma das maiores fugas de capital da Grã-Bretanha. O banco suíço "UBS Investment Bank" revelou perdas de 3,4 bilhões de dólares. O gigante Citigroup, banco de investimentos americano, também divulga perdas de 3,1 bilhões de dólares com o mercado subprime.

Em dezembro, George Bush, ex-presidente dos EUA, anunciou um plano de ajuda do governo americano que consistia na união de cinco bancos centrais. O Federal Reserve coordena uma ação de empréstimos a outros bancos.

Em fevereiro de 2008, em decorrência da crise, o governo britânico nacionaliza o Nothern Rock e o americano, Bear Stearns é vendido a 2,00 dólares a ação ao JP Morgan (outro banco de investimentos americano) com apoio do governo, garantindo 30 bilhões de dólares de “ativos podres” do Bear, os títulos que estavam ligados aos empréstimos de risco. O valor da compra foi de 240 milhões, sendo que um ano antes, o banco valia 18 bilhões de dólares.

Em abril, o Fundo Monetário Internacional (FMI) alerta que as perdas podem chegar a 1 trilhão de dólares, e ressalta que a crise se espalhou para setores como crédito ao consumidor e dívidas de empresas.

O banco central da Inglaterra divulga plano de 50 bilhões de libras para ajudar os bancos, eles poderiam trocar dívidas de hipoteca por títulos do governo.

Os bancos precisavam de dinheiro, repor a liquidez, e começam a lançar novas ações no mercado. O banco britânico Royal Bank of Scotland lança ações no valor 12 bilhões de libras (mais de R$ 41 bilhões), o maior lançamento da história da Grã-Bretanha.

Em maio, o banco suíço UBS também lança ações no valor de 15,5 bilhões de dólares para cobrir parte de suas perdas, que chegaram a 37 bilhões de dólares, mais do que qualquer outro banco afetado pelas turbulências do mercado internacional.

Em junho, o banco britânico Barclays, anuncia os planos para levantar 4,5 bilhões de libras (cerca de R$ 15,4 bilhões) lançando ações no mercado.

Em julho, as autoridades financeiras dos EUA prestam ajuda a duas gigantes do setor de hipotecas: Fannie Mae e Freddie Mac. As companhias eram responsáveis por quase metade das hipotecas do país e possuíam cerca de 5,3 trilhões de dólares em financiamentos no mercado imobiliário americano.

Em agosto, o gigante europeu HSBC alerta que as condições são as mais difíceis das últimas décadas, depois de sofrer queda de 28% nos lucros semestrais. O ministro da Fazenda britânico, Alistair Darling, afirma que a economia da Grã-Bretanha enfrenta sua pior crise dos últimos 60 anos.


Crise no topo


Em setembro de 2008, a crise imobiliária atinge seu ápice. Isso porque neste mês, os americanos assistiriam à nacionalização das duas gigantes do setor de hipotecas, além da quebra do quarto maior banco de investimentos dos EUA. Ações mais eficientes e rápidas são tomadas para evitar a falência de mais bancos, hipotecárias e seguradoras. O mercado econômico, já em colapso, sofre efeitos ainda mais desastrosos.

A ajuda financeira que a Fannie Mae e Freddie Mac haviam recebido não foi suficiente e o governo assume o controle das empresas. A quebra da confiança, o aumento das incertezas e a polêmica sobre a intervenção do estado no socorro financeiro ao setor privado aumentam a tensão em torno da situação econômica do país.

Oito dias depois, o anúncio de falência do Lehman Brothers (quarto maior banco de investimentos dos EUA), derruba toda Wall Street e congela o mercado financeiro.

O Lehman era considerado um dos maiores operadores de empréstimos de Wall Street e havia investido fortemente nos títulos ligados ao mercado subprime. Como esses investimentos eram de risco, os economistas já esperavam que houvesse uma perda de confiança em relação ao banco. E foi o que aconteceu. A falta de segurança desse tipo de investimento provocou a queda no valor das ações da empresa. Entre maio e julho de 2008, as perdas registradas atingiram 3,9 bilhões de dólares e o banco anunciou o maior prejuízo líquido de sua história.

Ninguém era correntista no Lehman, este era um banco de investimentos. Porém, muitos outros bancos e fundos de pensão mantinham negócios com a instituição e desatar essas relações levaria tempo. Dessa forma, esses outros bancos teriam que regular a liberação de recursos, à medida que não sabiam exatamente o quanto estavam expostos ao gigante americano.

Na época da falência, o Tesouro americano estudou ações para evitar a quebra do Lehman Brothers. Houve uma tentativa de vender as ações do banco, que não estavam atreladas aos investimentos imobiliários de risco, ao banco britânico Barclays. Os chamados "títulos podres" seriam assumidos pelas demais instituições financeiras que ainda sobreviviam nos EUA. A ação é vetada, pois levaria o mínimo de um mês para uma avaliação mais precisa dos riscos que o banco estaria correndo.

Como o plano não dá certo e o tesouro se nega a prestar outra ajuda financeira (como havia feito com o Bear Stearns, Fannie Mae e Freddie Mac), o clima de preocupação dos bancos dos outros países que mantinham relações com o Lehman é intensificado. Autoridades de todo o mundo cobrariam uma posição dos EUA no controle financeiro.

A situação não poderia piorar, mas outra empresa dava sinais de risco de falência. A maior seguradora do país, AIG (American International Group), registrava uma perda líquida de 18 bilhões de dólares entre janeiro e agosto de 2008. A empresa precisava levantar dinheiro para honrar seus compromissos com os investidores.

A AIG tem atividades diversificadas, como no ramo de locações e vendas de aviões, empréstimos imobiliários e empréstimos ao consumo. Os efeitos de uma falência seriam tão desastroso quanto os do Lehman Brothers e o governo não poderia deixar que mais uma empresa quebrasse. No dia 16 de setembro, o Fed libera então 85 bilhões de dólares e assume quase 80% das ações da seguradora e o gerenciamento dos negócios.

Entre o Bear Stearns, o Lehman e a AIG, 35 mil empregos desaparecem nos EUA. No mundo, grandes bancos passam por processos semelhantes de nacionalização: Fortis Bank é socorrido pela Bélgica em parceria com Holanda e Luxemburgo; Bradford & Bingley da Grã Bretanha e o Glitinir da Islândia.

Cabe ao Secretário do Tesouro Americano, Henry Paulson, e seus conselheiros como Timothy Geithner, diretor da divisão do Federal Reserve em Nova York, desenvolver um plano que evitasse perdas maiores e devolvesse a liquidez ao mercado. (O Fed possui 12 divisões regionais).

Em paralelo, os próprios bancos tentam vender parte de suas ações para grupos estrangeiros e apelam até para milionários americanos. O Goldman Sachs recebe ajuda financeira de Warren Buffet, um dos investidores mais bem sucedidos e eleito o terceiro homem mais rico do mundo em 2010.

Geithner trabalha na tentativa de fundir bancos comerciais aos de investimentos para que estes pudessem utilizar dinheiros de depósitos. Enquanto isso, Henry Paulson levaria ao congresso um plano que pedia 700 bilhões de dólares em ajuda financeira.

O objetivo deste pacote era comprar os “ativos podres” dos bancos, tirando-os das mãos das empresas. Com isso, a situação financeira iria melhorar, diminuindo o risco de falência e aumentando a disposição do crédito.

A polêmica sobre o pacote envolve a discussão da intervenção do Estado na economia, através do socorro financeiro às empresas privadas. Tanto democratas, quanto republicanos levariam um tempo para chegar ao acordo.

Existia um consenso sobre a necessidade. George Bush (na época o presidente dos EUA) discursou na Casa Branca afirmando que sem o pacote de ajuda, o país poderia entrar em recessão e o custo para a população seria ainda maior. A crise afetava o mercado de crédito em todo o mundo e se novas empresas falissem, aumentaria o impacto negativo no valor das ações de muitas outras companhias. Porém, o plano era baseado numa expectativa de que os títulos comprados voltassem a ter valor em longo prazo. Assim, não havia certezas do que poderia acontecer. Os bancos venderiam títulos ao Tesouro e receberiam pelo dobro de seus valores em dinheiro. A estratégia representava uma grande injeção de capital pela qual os contribuintes americanos não receberiam nada em troca.

No dia 3 de outubro, depois de muitas discussões, o pacote é finalmente aprovado. O Tesouro compra ações dos bancos de investimentos, descongelando o crédito e devolvendo o sentimento de confiança. Isso não significava uma nacionalização, a compra de ações não teria direito a voto nos conselhos bancários.

O pacote foi o ponto de partida para que a economia pudesse se restabelecer. Ainda no fim de 2008 e início de 2009, conseqüências da crise apareciam no mundo.

Uma recessão é caracterizada por quedas no Produto Interno Bruto (PIB) durante dois trimestres consecutivos. Essas perdas aprecem em grandes economias mundiais:

No dia 13 de novembro de 2008, a Alemanha anuncia que entrou em recessão pela primeira vez desde 2003. O país era a quarta maior economia mundial. Quatro dias depois, o mesmo acontece com a segunda maior economia, o Japão - o país não entrava em recessão há sete anos.

Em 23 de janeiro de 2009, a sexta maior economia, Grã-Bretanha, também anuncia que enfrenta sua primeira recessão desde 1991.

Crise em decadência


O furacão da crise já havia devastado boa parte do mundo quando seus ventos começaram a se acalmar, em meados de 2009. Ainda haveria refrações de sérias conseqüências, como o aumento do desemprego nos Estados Unidos, que chegou a atingir 10% das famílias norteamericanas, que também perderam suas casas graças aos valores hipotecários. Reflexo dos poucos empréstimos autorizados pelos bancos, que mesmo após o plano de injeção de capital aprovado pelo país, ainda dificultavam o acesso ao dinheiro, o que não sustentaria a crescente queda do mercado.

Foi a partir do primeiro semestre daquele ano, quando a retração do PIB chegou a 5,7%, que os mercados começaram – muito lentamente – a se estabilizar, de forma que a tendência era a reversão da depressão mundial. Ironicamente, o crescimento da economia a partir do consumo também seria de 5,7% até o final de 2009, número que surpreendeu os especialistas. Pelo lado negativo, o resultado total do PIB apresentou uma queda de 2,4%, pior resultado desde 1946, um ano após o fim da Segunda Guerra Mundial.

Os bancos aproveitaram a guinada e começaram a devolver o dinheiro injetado. Os sinais de recuperação aparecem – ainda que timidamente – em países como o Japão, cujo PIB salta 1,1% até o fim de 2009. O crescimento de 0,3% indica o fim da recessão na França e na Alemanha. A China, que se manteve estável desde o começo da crise, apresenta os melhores números: 7,9% de crescimento no segundo semestre daquele ano. Países como o México e a Rússia ainda sofrem com a queda de mais de 10% na evolução de seu PIB.

A injeção de capital elevou a confiança nos bancos e, em 2010, a compensação em Wall Street atingiu o recorde em 135 bilhões de dólares. Dez bancos passam a concentrar 77% de todos os ativos bancários americanos, de acordo com economistas em matérias publicadas pelo jornal “O Estado de S. Paulo”.


“Marola” brasileira?


Se os problemas da crise financeira já diminuíam lá fora, aqui no Brasil há quem jure que a recessão nem deu as caras. Fato é que os efeitos imediatos não foram tão assustadores em solo tupiniquim, quanto os danos causados nos EUA. Os especuladores estrangeiros venderam aos montes suas ações, uma tentativa de angariar fundos para reparar as perdas nos países de origem. Com isso, as cotações acionárias caíram na bolsa de valores e o dólar subiu.

No entanto, o principal efeito da crise no Brasil foi a diminuição do crédito. Por se tratar de uma chamada “crise de confiança”, a recessão levou os bancos a dificultar o empréstimo tanto para as grandes empresas, que dependem de financiamento externo, quanto para a pessoa física.

Como medida de emergência, o Banco Central anunciou mudanças nos depósitos compulsórios das instituições financeiras para controlar a quantidade de dinheiro que circulava na economia nacional, disponibilizando créditos pré-arrecadados para que os bancos tivessem dinheiro para emprestar aos seus clientes (explicação disponibilizada pelo site de economia GuiaDoDinheiro.com).

Mais que os problemas econômicos, os efeitos da crise financeira mundial de 2008, no Brasil, foram muito mais de abrangência política. Enquanto alguns economistas afirmam que o país pôde resistir melhor a esta recessão do que aconteceu com as anteriores graças às mudanças econômicas realizadas durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (com as metas de inflação, valorização da moeda nacional, responsabilidade fiscal e câmbio flutuante), outros especialistas preferem defender a tese de que as variadas formas de políticas já lulistas (como a distribuição de renda, investimentos públicos, diminuição da pobreza com a emersão de uma classe social que agora possui poder de compra, com a valorização do mercado interno, além da geração de empregos), é que defenderam o Brasil de maiores danos durante a recessão mundial.

Não se sabe se foi por acreditar nisso ou se foi para acalmar a população, mas o presidente Lula chegou a comparar os efeitos da crise mundial no Brasil com uma marola, aquela pequena ondulação no mar que não assusta nem às criancinhas que brincam à beira da praia, e foi largamente criticado. Lula utilizou os mesmos argumentos já citados para defender a idéia de que o Brasil estava menos suscetível à recessão, mas os críticos afirmaram que as medidas governamentais eram simplistas, e que o presidente estava varrendo só por onde o padre passa.


O ateu profeta: Karl Marx estava certo


Após todas as conseqüências da recessão mundial de 2008 e com a ascensão posterior de uma nova crise, um fator essencial foi percebido como característica intrigante: a intervenção direta do Estado para salvar os mercados. Como este fator contradiz um dos princípios básicos do sistema capitalista, o de liberdade total, auto-regulação e autonomia plena dos mercados, o “salvamento” da economia pelos órgãos estatais apontou uma grande contradição. No entanto, esta contradição não é nenhuma novidade. O fenômeno já foi alertado – alguns diriam “profetizado” – pelo filósofo Karl Marx, o pai do comunismo, há pelo menos 160 anos.

O discurso do presidente Lula na abertura da reunião do G20, em 2008, demonstra a opinião de especialistas que estudam a obra de Marx. Lula criticou a forma supostamente autônoma dos mercados e reafirmou a força do Estado na economia. “Ela (a crise) é conseqüência da crença cega na capacidade de auto-regulação dos mercados e, em grande medida, na falta de controle sobre as atividades de agentes financeiros. Por muitos anos, especuladores tiveram lucros excessivos, investindo o dinheiro que não tinham em negócios mirabolantes. Todos estamos pagando por essa aventura. Esse sistema ruiu como um castelo de cartas e com ele veio abaixo a fé dogmática no princípio da não intervenção do Estado na economia. Muitos dos que antes abominavam um maior papel do Estado na economia passaram a pedir desesperadamente sua ajuda”.

No “Manifesto do Partido Comunista” (1848), a principal obra de Karl Marx, escrita em parceria com o companheiro Friedrich Engels, o filósofo explica as crises como o colapso do capitalismo, justamente baseado em “uma sociedade que liberou tão formidáveis meios de produção e troca”, que é “como a feiticeira incapaz de controlar os poderes ocultos desencadeados por seu feitiço”. Marx afirmou que a necessidade de intervenção do Estado contradiz o capitalismo, e é o caminho preferível para o comunismo. A mistura do público com o privado, tão comum hoje, é uma das provas de que o sistema capitalista tal qual é administrado e defendido há pelo menos 30 anos (com a idéia de Estado Mínimo, onde a participação do Estado é ínfima, para aumentar o poder do mercado), é prova contundente de que o capitalismo está falido.

De acordo com o doutor em História Econômica e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), João Antônio de Paula, um dos maiores especialistas brasileiros na obra de Karl Marx, a teoria do filósofo nunca foi tão atual. João Antônio explica, em entrevista concedida ao site Vermelho.Org, que enquanto o capitalismo existir, o marxismo será indispensável para entendê-lo. Quando Marx escreveu suas teorias no século XIX elas eram apenas possibilidades. Mas a ideia de que o capitalismo seria um sistema mundial se confirmou, assim como os ciclos de desenvolvimento e crise. Por isso, sua teoria é mais atual hoje do que quando ele era vivo", diz o historiador.

E não são apenas os especialistas comunistas que afirmam que Marx estava certo. O filósofo político John Gray, capitalista convicto, escreveu um artigo para a BBC Brasil afirmando que “Karl Marx podia estar errado quanto ao comunismo, mas estava certo a respeito de muitos aspectos do capitalismo”. O professor de economia da Universidade de Nova York, Nouriel Roubini, foi além, e entrevista para o The Wall Street Journal, repercutida por diversos veículos, como o The International Business Time: “A não ser que haja outra etapa de massivo incentivo fiscal ou uma reestruturação da dívida universal, o capitalismo continuará a experimentar uma crise, dado o seu defeito sistêmico identificado primeiramente por Karl Marx há mais de um século”.

Ainda que Marx não estivesse certo em suas afirmações, tanto os especialistas marxistas quanto alguns dos capitalistas afirmam que o sistema capitalista tem dado demonstrações cíclicas e constantes de sua ineficiência de autogestão através das relações de livre mercado. Eles apontam ainda que a crise mundial de 2008 e a atual recessão serviram também para mostrar a necessidade de intervenção do Estado quando a situação aperta para o lado dos mercados, para que este não se autodestrua. E, como finaliza o capitalista John Gray em seu artigo, “[...] não foi o comunismo que conseguiu esta proeza. Foi o próprio capitalismo que eliminou a burguesia”.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

A abordagem e a função da arte em uma sociedade socialista

Baseado no texto “As Artes e as Massas”




A questão da forma como a arte é tratada em uma sociedade socialista tem sido abordada em diversos estudos de também diversos autores. Para todos, a questão primordial é definir qual é a função das manifestações artísticas em uma nova concepção de comunidade, tão diferente da capitalista, onde se preza a produção em massa e sem profundidade de reflexão.


A arte e a literatura (que também pode se localizar como expressão de arte) socialistas sofrem interferências burocráticas na tentativa de descobrir novas realidades sociais. Estas interferências se dão tanto pela influência externa do capitalismo ainda vigente, quanto pelas complicações internas do novo sistema proposto, além da própria concepção do povo, que ainda guarda “burguesismos” intrínsecos.


O grande porém da abordagem artística atual é que a arte de hoje não é mais feita para classes diferenciadas, para elites. Hoje as grandes massas consomem a arte de forma igualitária. Diferentemente do que acontecia nos séculos passados, milhões de pessoas consomem arte. Isso porque não há mais o prestígio pelo analfabetismo do povo, como ocorria nas sociedades anteriores ao capitalismo e socialismo, mas uma intenção de instruir a população, ainda que minimamente, como é o caso do sistema capitalista, pelo menos para que haja mão de obra excedente. Adorno e Horkheimer já explicitaram que a condição suprema para toda forma de produção é garantir condições de reprodução para as condições de produção. Isso quer dizer que é necessário haver mão-de-obra qualificada e excedente para que o sistema exploratório persista. No entanto, pessoas mais instruídas têm mais chances de contestação, e geralmente esta revolta acontece através do entendimento artístico. É seguro para o capitalismo, portanto, ter a própria concepção de arte, uma arte produzida em massa, para as massas, de forma homogênea, como um meio de controle e padronização da população, além de baseada no lucro dos senhores de capital. Cria-se assim as produções ilusórias, sem profundidade, contos de fadas para iludir ao povo, garantindo que as massas não saibam diferenciar o bom do ruim. A arte também é apresentada como hobby, diversão para as horas vagas, nunca como algo sério.


Em uma sociedade socialista, é diferente. A arte é levada a sério, pois se torna forma de educação para a população. A instrução do povo é tamanha que desaparece o clichê do homem simples. Os artistas são levados pelo Estado a produzir a arte que eduque, para que a consciência seja implantada ao povo. O problema apontado pelos capitalistas à arte socialista é de que suas expressões retrógradas se misturam às modernas sem distinção. Este é um problema mínimo, apenas de transição de sistemas. É importante ressaltar que o cidadão de uma comunidade socialista é capaz de levantar e propor debates longos sobre as expressões artísticas que vivenciou, sejam elas modernas ou tradicionais, pois está acostumado a consumir a arte como essencial à sua educação, e não apenas como fator imbecilizante, tão recorrente no capitalismo. O artista socialista tem a tarefa de educar o público e enfatizar sua responsabilidade social. Assim, a arte por diversão, não de todo negativa, também é aproveitada, mas de forma que seja boa arte. Não precisa ser imbecil para ser divertido, e nem monótono para ser instrutivo.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Mais grunge na moda e na música

Há dezessete anos, na manhã do dia 8 de abril de 1994, o eletricista e jardineiro pessoal dos Cobain entrou na mansão dos patrões para realizar os trabalhos de rotina. Ele limpou os canteiros, aparou a grama, verificou os fusíveis da casa principal e foi à estufa para regar os vasos de plantas. Antes de entrar, percebeu que algo estava errado. Olhou pela vidraça e viu um homem caído. Havia sangue por todos os lados, uma espingarda ao lado do corpo e um pedaço de papel amassado na mão esquerda do cadáver. O jardineiro fez a meia-volta e correu para o telefone mais próximo. Chamou a polícia e avisou: acabara de encontrar o patrão, Kurt Donald Cobain, 27 anos, que estava desaparecido desde o dia 2 do mesmo mês.

Kurt era viciado em heroína, e fugiu do centro de reabilitação no qual estava internado para se suicidar em casa. Os peritos afirmam que ele se matou no dia 4, com um tiro de espingarda de cano duplo, na boca. Cobain era marido de Courtney Love e pai de Frances Bean, de 3 anos, para quem dedicou seu bilhete de despedida. Kurt também era a maior estrela do rock naquela época. Com ele, morreram o Nirvana, a rebeldia dos anos 1990 e o grunge, considerado o último grande movimento roqueiro do século XX.



Kurt Cobain foi o responsável pela expansão do movimento grunge, com sua música e estilo, pois foi sua Smell Like Teen Spirit, principal canção do álbum Nevermind, de 1991, que explodiu a ideologia pelo mundo. O grunge de Cobain e de outras bandas do movimento levou aos jovens a possibilidade de enfrentar os próprios sentimentos e defender seus pontos de vista sobre assuntos como sociedade e família. Mesmo as demais bandas do movimento pararam, paulatinamente, de tocar e gravar, e acabaram por desaparecer do cenário musical. É do grunge também todo um estilo de vestimenta, que tem reflexos na moda até os dias de hoje.



Agora, dezessete anos depois da morte do principal nome do grunge, o estilo começa a reaparecer, na moda e na música. Algumas das bandas que marcaram a época retornaram, gravaram novos discos e estão em turnê pelo mundo. É o caso do Soundgarden, Pearl Jam, Mudhoney, Alice in Chains, Sonic Youth, Hole, Stone Temple Pilots e até o Rage Against the Machine, que apesar de não fazer exatamente parte da leva grunge, também aproveitou a onda para subir nas paradas de sucesso. Há ainda aqueles remanescentes que seguiram outras linhas musicais, mas não perdem a pegada do principal movimento noventista, como o Foo Fighthers e os Pixies. Algumas destas bandas passaram pelo Brasil no ano passado, ou têm shows marcados em solo canarinho para 2011.



Na moda, estilistas de toda parte aproveitam o renascimento do movimento para relançar peças típicas do grunge, como camisas xadrez e calças rasgadas. Mas, para entender estas roupas, é preciso entender o movimento.






Nasce o grunge.





Até o final dos anos 1980, a música norte-americana era dominada por, basicamente, três estilos: o discoteque, o heavy metal meio glam, e a música de Michel Jackson. Os jovens roqueiros eram praticamente obrigados a conviver com suas únicas opções, em bandas como Kiss, Twisted Sisters ou Guns’n Roses, que crescia na virada da década. O punk rock dos Sex Pistols e dos Ramones decaíra desde o início dos anos 1980, quando Sid Vicious matou a namorada, Nancy, para se suicidar por overdose meses depois. As mudanças políticas e econômicas também eram opressoras para os adolescentes.



Se tudo era ruim assim para os jovens das grandes metrópoles, só podia ser pior para os garotos do interior do Estados Unidos. A pequena Seattle, cidade fria da Costa Oeste, não oferecia mais opções que a capital do Estado onde é situada, em Washington. Ali, no distrito de Aberdeen, chove o ano inteiro. O frio também é constante, pois a cidade fica próxima do pólo. Por ser uma pequena província, Aberdeen conta basicamente com duas opções de emprego: peixarias ou corte de lenha. O grande mercado de peixes da cidade emprega a maioria dos homens e mulheres, assim como as florestas estão cheias de lenhadores. Como em ambas as profissões as roupas são gastas rapidamente, os funcionários se vestem apenas com as peças mais baratas dos mercados e brechós. Em 1989 era possível encontrar uma camisa de flanela com estampa quadriculada por apenas 50 centavos de dólar, de acordo com o biógrafo Charles R. Cross, autor do livro “Havier Than Haven” (Mais Pesado que o Céu), que conta a vida de Kurt Cobain.



Foi dali que saíram todos os nomes do grunge, em histórias dignas de contos de fadas. Veja o caso de Cobain: formou o Nirvana em 1989, quando gravou o álbum “Bleach”, pela SubPop, gravadora de pequeno porte, com distribuição de apenas mil cópias. Em dezembro de 1990, Kurt morava em um carro, pois não tinha dinheiro para pagar o aluguel de uma casa. Em 1991, Cobain era o maior astro do mundo do rock. A reviravolta se deu quando um produtor da Geffen, gravadora da Warner Bros, assistiu a uma apresentação do Nirvana na qual os rapazes tocaram “Smells Like Teen Spirit”. Eles assinaram com a gravadora e explodiram nas paradas da Billboard. Duas semanas após o lançamento de Nevermind, o Nirvana já era primeiro lugar no ranking, ultrapassando até mesmo o Michel Jackson, que dominava a primeira colocação havia 3 anos consecutivos.



Com uma mudança tão brusca de vida, mal deu tempo para Cobain se preparar para o sucesso. E foi com aquelas roupas de Aberdeen, calças jeans desfiadas pelas horas de trabalho, camisas xadrez de flanela barata e botas batidas, que Cobain e seus companheiros de banda , Krist Novoselic e Dave Grohl, apareceram em todos os programas de televisão, shows e propagandas.



A música era diferente. Os garotos do grunge não tinham a habilidade musical necessária para tocar o tão aclamado heavy metal de sua adolescência, e também não eram de todo revoltos com os sistemas políticos para voltar-se ao punk rock. Este crossover, esta mistura, resultou na musicalidade grunge, com guitarras barulhentas e solos destoantes. Foi em uma revista de crítica musical que o termo “grunge” surgiu pela primeira vez. O termo deriva da palavra “grungy”, uma gíria norte-americana para “encardido”, que define tanto as roupas quanto as músicas destes artistas.



A partir do sucesso do Nirvana, as gravadoras foram em busca de outras bandas daquela região para lançarem ao mercado. Vieram os demais grupos, todos tão assustados quanto Cobain, todos com as mesmas vestimentas. As bandas formadas por garotas também chamaram a atenção, assim como as peças de brechó usadas pelas meninas. Um estilista de fama internacional, Marc Jacobs, percebeu que aquelas roupas eram imitadas pelos jovens de toda parte, e sentiu o potencial do estilo. Jacobs lançou a primeira coleção baseada no grunge, em 1993, e o estilo se popularizou nas vitrines das lojas e shopping centers. De acordo com a filósofa e consultora de moda Ana Carolina Acom, “o visual era junkie, porque tanto o público, assim como as bandas, eram junkies, e as mangas compridas escondiam as picadas (de heroína)”.



A moda pegou e muito. Mesmo as demais bandas grunge, aquelas que não eram dos frios recônditos de Seattle, mas das praias da Califórnia, também eram adeptos do brechó. A aparência destes rapazes era realmente a de um comprador atacadista que entrou em um bazar e vestiu o máximo de peças que conseguiu, mesmo sem se importar com as combinações.





Morre o Grunge. Mas volta.





Com a morte de Cobain, a cena grunge esfriou. Algumas das características ficaram fixadas ao vestuário do dia a dia das pessoas, como as camisas xadrez por cima de camisetas brancas, sempre usadas pelos homens em ocasiões não-formais. Mas aquela febre passou, ficou adormecida. As bandas se dissolveram, e a moda seguiu caminhos diferenciados.



As tendências começaram a reaparecer já no início dos anos 2000, quando o antigo vocalista da banda Soundgarden, Chris Cornell, juntou-se aos demais integrantes da banda Rage Against The Machine para formar o Audioslave. O grupo atingiu as rádios com o single “Like a Stone”, além dos videoclipes de “Cochise” e “Show me how to live”. Tanta gritaria grunge era acompanhada por um vestuário diferente, mas não tanto. Ao invés dos blusões e calças rasgadas, Cornell trouxe à tona as peças de brechó que valorizam a sensualidade masculina, com calças justas e camisetas pequenas. É claro que a sensação do grunge sempre esteve à volta, com as estranhas combinações do cantor.



Pearl Jam veio ao Brasil, pela primeira vez, em 2005. Foi o retorno oficial do estilo musical, um novo suspiro. Com eles, vieram Mudhoney, L7 e até os Pixies. As rádios voltaram a tocar as músicas do início dos anos 1990 e os jovens voltaram a apreciar a ideologia do grunge. Só faltava o aval dos estilistas.



Este aval veio com o intitulado (pelos próprios especialistas em moda) “New Grunge”. AS camisas xadrez ganharam novo desenho, menos largas e mais rentes ao corpo. Os jeans rotos viraram bermudas e shorts para as meninas. Boinas e chapéus engraçados tornaram-se tendência. Os tênis de basquete substituíram as botinas de cano curto.



Na música, somente no ano passado, diversas bandas visitaram o País do Futebol. Entre elas, Stone Temple Pilots, Mudhoney, Rage Against The Machine (de volta, após o término do Audioslave), Pixies. Shows do Alice in Chains (com novo vocalista) estão marcados para novembro deste ano.



Dezessete anos após o suicídio de Cobain, ele é relembrado na moda e na música, o que prova que o grunge não morreu. Ele só estava dormindo.






Republico agora a entrevista que fiz com a banda Mudhoney, por ocasião da Virada Cultural de 2010.


Banda precursora do maior movimento musical dos anos 90 toca em Mogi







Imagine uma cidade onde chove em 80% do tempo. O clima costuma ser frio e úmido, e essa cidade é conhecida por alguma produção rural. No entanto, a tal cidade fica praticamente ao lado de uma das maiores metrópoles do país. Por isso, a única opção dos jovens para se divertir é aproveitar os fins de semana na capital, ou aceitar as poucas condições culturais propostas por sua província. Geralmente estas opções não lhe são agradáveis.



Não, não estamos falando de Mogi. Esta é a Seattle de Mark Arm, Steve Turner, Guy Maddison e Dan Peters, os rapazes do Mudhoney. A banda precursora do movimento grunge esteve em Mogi no sábado passado (22), como a principal atração da Virada Cultural Paulista. Atraindo o maior público da festa, cerca de 15 mil pessoas se espremeram na Avenida Cívica para assistir ao show da banda, os integrantes do Mudhoney logo se identificaram com nossa cidade, pelas semelhanças com sua terra natal.



As condições de Seattle no final dos anos 1980 foram de suma importância para o surgimento do grunge. De tão entediados, ainda que não soubessem tocar corretamente, aqueles jovens provincianos resolveram criar a própria música para passar o tempo e soltar a opressão em que acreditavam viver. Não eram, nem de longe, tipos ideais de astros do rock, propensos ao heavy metal. Também não estavam se preocupando com os problemas de cunho social, descartando o punk. Era apenas expressão, com suas guitarras barulhentas e vocais gritados, usando as mesmas roupas com que costumavam trabalhar ou se proteger do frio. O Mudhoney foi a primeira banda a ter este tipo de som reconhecido no meio alternativo e independente.



O termo "grunge", que vem de "grungy" - encardido, em inglês -, ilustra bem o tipo de música destas bandas. Ninguém poderia dizer que este estilo um dia faria tanto sucesso. Até que, em 1991, outro rapaz de cabelo engordurado, Kurt Cobain, mostrou sua Smells Like Teen Spirit para o mundo, em um dos álbuns mais importantes de toda a história do rock. Nevermind chegou a desbancar Michael Jackson do primeiro lugar das paradas da Billboard, o que não acontecia há anos. O Nirvana de Cobain foi totalmente influenciado por Mudhoney. Se hoje você usa roupas com estampas em xadrez, calças jeans desfiadas ou camisas de flanela, moda típica da geração X, agradeça ao grunge.







Guilherme Peace: Esta é a quarta vez que tocam no Brasil. Existe alguma diferença do público brasileiro com os fãs de outros países?



Mark Arm (vocalista): Existe sim! Os brasileiros são mais calorosos. Mas a maior diferença, e o mais legal, é que o público do Brasil canta junto todas as canções, inclusive as mais recentes, o que não é muito comum nos outros países.







GP: E como é tocar hoje as mesmas músicas de 20 anos atrás e ver todo este público, uma mistura entre velhos e novos fãs, de várias idades diferentes?



Steve Turner (guitarrista): Cara, isso é uma coisa maluca! [risos] Acho que o ponto alto da música é esse lance de não envelhecer, sabe? As canções acabam sendo meio atemporais...







GP: Vocês influenciaram toda uma geração, além de iniciar um movimento musical que alguns chamam de "último suspiro do rock". Acham que sua música mudou muito de lá pra cá, ou ainda é o grunge de sempre?



Turner: Não mudou muito não. Só o fato de que estamos mais velhos.







GP: No começo, Mark Arm fazia parte do Green River, banda que se dividiu, e dessa divisão surgiram o Mudhoney e o Pearl Jam. Por que vocês não seguiram o mesmo caminho de fama que o Pearl Jam, no meio mainstream?



Turner: Acho que nossa música sempre foi muito mais "suja" do que a dessas outras bandas... Não queríamos seguir o mesmo caminho...



Arm: Na verdade, não esperávamos chegar tão longe. E olha onde estamos... em Mogi das Cruzes! [risos]





Esta reportagem foi originalmente publicada nos jornais Mogi News, de 28/05/2010, e Diário do Alto Tietê, de 29/05/2010.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Para Marla Singer

She was a liar. She had no diseases at all. I had seen her at Free and Clear, my blood parasites group Thursdays.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Robin Hood, Julián Carax, refém, prostituta, dupla-personalidade.

Certa vez me advertiram dos perigos de misturar textos factuais, literatura e aquilo que chamam de "poesia", mas que são apenas expressões. É claro que não dei ouvidos.

Terminei de ler ontem "A Sombra do Vento", de Carlos Ruiz Zafón. Livro lindíssimo, bem ao estilo da literatura em língua espanhola. Uma história tão intensa que não pude parar de lê-lo, do dia em que o peguei emprestado, na noite de quinta-feira, até a tarde de ontem. O mais difícil foi despedir-me dos personagens.

Assisti também "Robin Hood", a nova versão. Acreditem, é ótimo.
Me distraí com um filmeco de ação de Bruce Willis.
Assisti à peça "A Propósito da Chuva", com Rui Ricardo Dias, o Lula de "Lula - O Filho do Brasil". Ótima adaptação do romance de Dostoiévski.

A Natália Ramos deixou "Lolita", o clássico de Vladimir Nabokov, em minha gaveta.

O William me trouxe "O Clube da Luta", de Chuck Palahniuk.


Estes, mais o texto que devo concluir para um fichamento da faculdade, e tenho bastante literatura para hoje.

Há melhor esconderijo que estes?

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

O Foca - Meu primeiro ano como jornalista

Capítulo 1

Houve uma época em que as mensagens ao vivo eram moda. Em uma noite qualquer, em dia de semana mesmo, um carro poderia parar em frente à sua casa. Pelos adesivos no capô, os vizinhos já saberiam do que se tratava. Alguns seriam tímidos, e ficariam em frente aos próprios portões, disfarçando, mas olhando curiosamente. Outros, mais descarados, se reuniriam às crianças – elas sempre estavam lá – e prestariam bastante atenção para saber quem era o “felizardo”. O motorista do carro desceria, assim como o passageiro. Geralmente era um cameraman com cara de entediado. Eles abriam o porta-malas, onde um belo sistema de som tocaria alguma música romântica, clichê e apelativa. Algo de Lara Fabian ou Celine Dion. Música alta. O motorista, geralmente vestido de terno, usaria um microfone para chamar o destinatário da mensagem. E aí começava o verdadeiro constrangimento. Todos os vizinhos na rua, olhando, enquanto a pessoa que recebeu a mensagem faria de tudo para não sair de casa e ter que ser protagonista do show. Seus familiares o obrigariam, entre sorrisos e piadas. A pessoa que enviou a mensagem não se pronunciava até o final. E o motorista do carro chamando. Suponhamos que a homenageada da vez se chamasse “Giselda”.

- Giselda! – diria o mensageiro – Venha Giselda. Temos uma mensagem de muito carinho pra você!

A coitada da Giselda sairia de casa, enxugando as mãos com um pano de prato (ela estava lavando a louça no momento em que recebeu a tal da mensagem). Rodeada pelos familiares e curiosos, Giselda se posicionaria em local estratégico da calçada, fazendo o máximo para não ser focalizada pela câmera.

- Giselda, minha querida – começaria o mensageiro, no microfone. Lara Fabian cantando ao fundo. Até a molecada que jogava bola interromperia a brincadeira. Não dava pra perder uma mensagem ao vivo. – “Giselda, luz dos meus dias! Você é uma pessoa muito especial para nós”.

A essa hora, o marido da Giselda já teria se entregado, abraçando a esposa mais vermelha que um pimentão.

- “Giselda, minha linda” – leria o mensageiro – “Somos felizes por poder compartilhar a tua presença”!

Depois de mais um monte de lugares comuns, crianças tentando se aparecer para a câmera e um choro de Giselda – eu nunca soube se as pessoas que recebiam estas mensagens choravam de emoção ou de vergonha – o mensageiro entregava um buquê de rosas vermelhas, uma faixa de lembrança, e a música chegava ao ápice. Algo digno de cena dramática de novela das oito. O motorista e o cameraman iam embora, e todos parabenizavam o marido romântico de Giselda, enquanto ela mesma enxugaria as lágrimas, ainda com o rosto ardendo de vergonha. As mensagens ao vivo eram realmente constrangedoras, e, ao mesmo tempo, uma espécie de evento para a vizinhança. Elas eram moda mais ou menos em 2001. Foi nesta mesma época que tive meu primeiro contato com o jornalismo.

Eu devia ter uns doze ou treze anos. Era começo de ano, e a escola ainda não tinha voltado das férias. De manhã, era sempre a mesma coisa. Depois de assistir aos desenhos pela televisão, eu juntava algumas moedas, aquelas que ganhava de minha mãe por ter lavado o quintal ou limpado a sujeira do Petrúquio, nosso vira-latas acinzentado, e ia à mercearia da rua de baixo para comprar minha bala de maçã-verde preferida. Não sei se ainda fabricam desta bala. Era realmente uma delícia. O fato é que havia uma movimentação fora do comum em frente à mercearia. Um carro prateado, com o logotipo da Rede Globo e da TV Alterosa, filial da Globo em Belo Horizonte, estava estacionado, com uma estranha antena em cima, enquanto o Seu Benê, dono da mercearia, conversava com uma mulher lindíssima, que tinha o rosto carregado de maquiagem. Assim como quando havia alguma mensagem ao vivo, toda a vizinhança estava do lado de fora das casas. As crianças se amontoavam perto do rapaz magricela e de boné virado para trás, que segurava uma pesada câmera. Ele usava um colete verde, cheio de bolsos, como o colete de um pescador. A mulher trajava um terno simples, mas elegante. Quando ela apontou o microfone para Seu Benê, eu soube que era uma reportagem. Só não sabia o que estava acontecendo.

- Assaltaram a mercearia – ouvi a mãe do meu amigo Saulo, que morava ali perto, comentando com outra vizinha qualquer. – Acho que estão ao vivo.

Eu só sabia associar “ao vivo” aos trágicos plantões que via na Globo, que sempre começavam com aquela musiquinha que faz qualquer brasileiro tremer, enquanto espera pela notícia do desastre, ou às fatídicas mensagens. Vi o Saulo, tão curioso quanto eu, correndo para dentro da mercearia. Acompanhei. Ali, ao lado da mesa de sinuca – pois as mercearias em bairros de subúrbio também são bares – havia uma televisão, sempre ligada no noticiário. E lá estava Seu Benê, ao vivo, explicando sobre o assalto. Era um link ao vivo para o noticiário local, em um daqueles jornais rápidos que aparecem entre uma e outra programação. Mesmo com a reportagem acontecendo ao nosso lado, Saulo, eu e as outras crianças não conseguíamos despregar os olhos da tela da televisão. Era engraçado ver o Seu Benê de todos os dias ali, na tela. Era como se fosse um artista, ou algo do gênero. E foi assim que chamamos o Seu Benê por um bom tempo: “artista”.

Ter um carro da Globo estacionado em nosso bairro, ainda que fosse da filial Alterosa, deu motivo para conversas durante umas duas semanas. Ouvi a molecada comentando que uma menina até pediu o autógrafo do Seu Benê, mas não acho que seja verdade. Mas uma coisa não me saía da cabeça. O colete verde do cinegrafista era tão legal!

Voltei a pensar em jornalismo alguns meses depois, quando voltava da escola. Nossa rua era um morro íngreme, e a Paloma, minha irmã um ano mais nova, e eu, subíamos devagar, segurando as alças das mochilas. Minha mãe estava esperando ao portão, o que não era comum. Ela parecia bastante nervosa. Usava seu avental de lavar roupa, que lhe tirava o aspecto juvenil que ela sempre possuiu, com sua aparência de adolescente. O rosto estava vermelho, como se ela tivesse cravado as unhas nas bochechas, o que fazia às vezes, quando estava aflita.

- Que bom que vocês chegaram – ela exclamou. A Paloma e eu nos olhamos, assustados. – O mundo está acabando!

Corremos para dentro de casa, as mochilas ainda nas costas. Meu irmão menor, o Luquinhas, esbarrou em mim no corredor que levava à sala.

- Eles cortaram o Dragon Ball no meio! – reclamou. Fiquei ainda mais aflito. Se cortaram o Dragon Ball no meio, então devia ser importante. Até meu padrasto estava em casa, atento à televisão. Eram mais ou menos onze horas.

Um prédio na televisão. Tinha fumaça, mas eu não entendi o que um prédio pegando fogo em Nova Iorque, pelo que dizia a legenda, tinha de importante, para interromperem o Dragon Ball e fazer minha mãe dizer que o mundo estava acabando. Então um avião apareceu no canto da tela e acertou em cheio o prédio ao lado do que soltava fumaça. Foi muito rápido. Fiquei sem entender por alguns segundos, e então perguntei para ninguém:

- É filme?

A Rede Globo continuou transmitindo o desastre do World Trade Center por uma semana. O Jornal Nacional daquela noite foi inteiro sobre este assunto. Hoje sei que foi um programa premiado.

Minha mãe é exatamente como eu. Os sentimentos dela são amplificados, tudo é intenso demais. Quando viu dois aviões se chocarem contra prédios, ao vivo, seu susto se transformou em medo, que se tornou conclusão: o mundo estava acabando. Demorou um tempo para que ela tirasse esta paranóia da cabeça. Mas me assustou.

Na escola, não se falava de outra coisa. Aprendemos sobre o Afeganistão, a Jihad e George Bush. A professora de geografia nos ensinou o que era Imperialismo Norte-Americano, e um punk socialista deu uma palestra sobre o domínio dos Estados Unidos e a busca por petróleo. As aulas de vídeo, nas quais geralmente assistíamos a algum filme da Disney enquanto os caras mais velhos da turma davam uns amassos nas meninas no fundo escuro da sala, ficaram mais interessantes com as gravações dos telejornais, principalmente do Jornal Nacional, que a professora levava para instigar a discussão em aula. Era engraçado ver o Willian Bonner dizer “boa noite” às dez da manhã. Mas, assim como o assalto à mercearia do Seu Benê, logo o assunto esfriou. Não falávamos mais sobre o World Trade Center, e o jornalismo saiu da minha cabeça.

O ano seguinte fez com que eu voltasse a assistir aos noticiários. Um operário, algo como mecânico, pelo que eu entendia, concorria à presidência do país. Eu simpatizava com nosso presidente, o Fernando Henrique Cardoso, mesmo sem saber nada sobre política. Isso porque eu sempre ouvia meu padrasto dizer que o “FHC é um baita presidente”. Mas quando vi aquele homem barbudo, que falava engraçado e não tinha o dedo mindinho, algo se acendeu em mim. Eu queria que ele ganhasse, e pronto. Não entendia suas propostas, não sabia de sua história. Mas passei a assistir aos horários eleitorais gratuitos e aos debates entre os presidenciáveis, nos quais sempre torcia por ele. Na hora do Jornal Nacional, que meu padrasto assistia todas as noites, eu ficava esperando para ver meu candidato favorito.

Não me importava com os outros cargos, não queria saber da política em si. A principal discussão naqueles meses era a Área de Livre Comércio das Américas, a Alca. Na escola, este era o tema das aulas de geografia. Eu não entendia muito bem do que se tratava, mas sabia que não era bom. E o meu candidato atava a Alca todos os dias, no horário político. Mais um ponto pra ele.

Lula ganhou as eleições. Em casa, só eu parecia feliz. O Jornal Nacional da segunda-feira após as apurações recebeu o novo presidente eleito, que participou do programa inteiro. E como era simpático este presidente!

Meu padrasto assinava a revista Veja. Nós não líamos aos jornais, mas eu tinha atividades na escola em que recortava algumas notícias. Mesmo os ataques diretos ao novo presidente não me faziam mudar de idéia quanto à minha simpatia. Mas me impressionava o modo como aquelas notícias instigavam a discussão. Novamente, eu não entendia o porquê, mas percebia como o jornalismo era poderoso.

Dois anos depois, eu concedi a minha primeira entrevista. Eu já não vivia em Belo Horizonte, mas em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, e o tema da entrevista era a minha banda de rock, Bagunça Organizada. O repórter era um estudante de jornalismo, que fazia um trabalho para a faculdade, sobre bandas independentes. Eu tinha quinze anos e era guitarrista e vocalista, além de compositor. O rapaz, um japonês esquivo, me procurou na escola – eu ainda não tinha parado de estudar. Nos sentamos em um dos bancos da praça. Ele ligou um gravador de mão e pediu que eu falasse sobre as músicas, sobre tocar, sobre meus gostos e minha relação com a família. Como bom geminiano, falei bastante. Ele usou os dois lados da fita. Após quase duas horas de conversa, ele me agradeceu, apertou a minha mão, e foi embora. Eu nunca li aquela entrevista, e nunca mais vi o tal japonês.

As fanzines eram mania entre os adolescentes do meio underground. Como gostava de desenhar, comecei uma, para poder mostrar minhas histórias em quadrinhos do Shunda, o Homem-Bunda, que fizeram sucesso na escola, em Belo Horizonte, dois anos antes. Para uma zine, eu precisava de mais do que desenhos. Escrevi à mão um release sobre minhas músicas, critiquei alguns discos do Guns’n Roses, não poupei elogios ao Nirvana, e fui em busca de um entrevistado interessante.

Nos anos em que vivi em Ribeirão Preto, e vivi intensamente, conheci diversas figuras marcantes. Mas poucas delas eram como o Kelsen. Um punk com já seus trinta e tantos anos, o corpo coberto de tatuagens e piercings, era de chamar a atenção. Meu primeiro contato com Kelsen já foi bastante chocante. Íamos tocar na casa de shows Mogiana, em um festival com diversas bandas. Quando o Distúrbio Mental, a banda em que Kelsen cantava, subiu ao palco, deu pra perceber que o cara fazia jus ao nome da banda. Não havia espaço em seu corpo que não tivesse tatuagens. E dava pra perceber bem isso, pois ele usava apenas uma tanga feminina, com um tapa-sexo, onde uma boneca de plástico, sem os braços, estava pendurada por uma corrente amarrada não sei aonde. Ele entrou, enquanto a banda executava um pesado hardcore, com uma garrafa na mão e uma tocha acesa na outra. Antes de cantar, Kelsen cuspiu fogo. Ele tomava um gole do líquido da garrafa e cuspia fogo sobre nossas cabeças. Depois, apagou a tocha e começou a cantar. Se é que se pode dizer que aquilo era cantar. Seus berros agudos me faziam lembrar de um bebê chorando de fome. Era bizarro.

Kelsen tinha um estúdio de tatuagens no centro da cidade. Fui ao estabelecimento, receoso, com o gravador que havia pegado emprestado do baterista da minha banda. Kelsen estava tatuando alguém. Era uma moça bastante bonita, dessas que a gente nunca imagina que teria uma tatuagem. O contraste entre Kelsen e a moça era quase cômico. Ele terminou o último traço da tatuagem na parte traseira da cintura da moça, conversou com ela por alguns instantes, e veio me atender. Expliquei sobre a zine, e ele aceitou me dar a entrevista.

Eu havia preparado algumas perguntas, mas não sabia que, em uma entrevista com alguém de conteúdo, a conversa pode tomar rumos inesperados. Entrevistei o Kelsen por mais de uma hora, e não fiz nenhuma das perguntas que havia anotado em uma folha de caderno. Foi uma conversa muito interessante. Depois, em casa, ouvi a fita inteira umas duas vezes. Não fazia idéia de por onde começar a transcrição, então desisti do zine.

Mais alguns anos, e eu estava prestes a escolher uma faculdade. Já havia decidido por História, mas a Filosofia, Pedagogia, Psicologia e Música também me chamavam a atenção. Eu já estava com vinte anos, então era bom me decidir rápido. Assisti a uma entrevista da banda Los Hermanos no programa do Jô Soares. Eu já havia me tornado fã da banda algum tempo antes, e fiquei impressionado ao descobrir que os integrantes tinham se conhecido na faculdade de jornalismo, na Pontífice Universidade Católica, a PUC, do Rio de Janeiro.

Em minha família, e somos uma família bastante grande, ninguém jamais havia passado por uma universidade. No entanto, o Brasil estava diferente agora. Eu já conhecia melhor ao presidente Lula, que fora reeleito, e gostava ainda mais do político. O programa Universidade Para Todos, o Prouni, dava ao estudantes carentes que fossem bem no Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem, a chance de bolsas de estudos em diversas universidades particulares. Fui razoavelmente bem no Enem, e, pelo site do Prouni, poderia me inscrever para concorrer a bolsas em cinco universidades diferentes. Excluí a Música – eu não conseguiria passar nos exames práticos – e me inscrevi em História, Filosofia, Pedagogia, Psicologia e Jornalismo, nesta ordem. Nunca havia pensado em cursar Jornalismo, mas coloquei assim mesmo, apenas por curiosidade. Além disso, estava influenciado pelos Los Hermanos. No mês seguinte, veio a resposta. Eu passei somente em Jornalismo, em uma faculdade nova de São Paulo. Eu morava com minha mãe em Atibaia, interior paulista, na época. A notícia de que eu entrara em uma faculdade foi tão forte para minha mãe que ela não teve reação. Ela disse apenas um “parabéns”, e o que eu interpretei como frieza, soube posteriormente que era surpresa. Ela seria a primeira mãe de nossa família que poderia dizer que tinha um filho na faculdade. E isso deve significar alguma coisa.

A rotina não era fácil. Eu acordava às quinze para as cinco, saía de casa e pegava um ônibus especial para a capital. Depois de mais de uma hora de viagem, pegava o metrô até a Vila Mariana, e chegava às quinze para as sete na faculdade. Saía da aula às onze e trinta, pegava o metrô e corria para a Rodoviária do Tietê. Precisava chegar em Atibaia antes das quatorze, pois entrava às quinze no trabalho de telemarketing. Saía do trabalho às vinte e duas e trinta, chegava em casa às vinte e três e dormia pouco depois da meia-noite. Na faculdade, não havia o tradicional constrangimento que vemos os alunos bolsistas de filmes e novelas sofrerem, pois oitenta por cento de minha turma era bolsista pelo Prouni. E a turma era grande, com cerca de setenta alunos.

Então, para ser clichê (como dizia Scott Wealand, da banda Stone Temple Pilots, “abuse do clichê”), o Jornalismo ganhou meu coração. As aulas eram fantásticas, os professores se tornaram deuses. Entre eles, o mais adorado era o professor Domingos Zamagna, que ministrava Comunicação e Expressão, algo como a gramática avançada do Ensino Médio. Zamagna era um homem muito velho, de cabelo branco e sempre muito bem vestido. Jornalista experiente, trabalhou na Rede Globo por mais de dez anos e era editor de uma revista sobre economia. Costumávamos dizer que, só de estar perto dele, já aprendíamos. Suas aulas eram salpicadas de ironia inteligente e comentários sobre o jornalismo dos anos 1960. Ele possuía uma distinta arrogância dos que sabem muito. Pura experiência. Falava pelo menos seis idiomas, era tradutor de bíblias e sempre nos explicava uma palavra desde o grego. Era reservado. Fui um dos poucos alunos que fizeram amizade com Zamagna. Ele costumava dizer que eu parecia com o filósofo Jean Paul Sartre, quando moço. Isso por causa dos meus cachecóis.

No segundo semestre de faculdade, Zamagna passou uma atividade especial para a classe. Deveríamos fazer uma reportagem completa, para jornal impresso. Ele dividiu a turma em duplas, e cada grupo deveria elaborar sua própria pauta, desde a concepção da idéia original à execução das entrevistas em si. Suas aulas eram uma simulação de uma redação jornalística, o que era ótimo, pois a maioria de nós jamais havia entrado em uma redação. Suas provas eram apenas textos, e tínhamos acesso a bons dicionários e livros de vocabulário, que ele deixava em cima de sua mesa.

No sorteio das duplas, fiquei com a Lívia Fonseca, uma mato-grossense por quem eu nutria uma paixonite. Ela queria fazer uma matéria diferente, que nos destacasse. Não era difícil, uma vez que Lívia também era uma querida do professor. Nossa facilidade com a escrita fez com que Zamagna se aproximasse de nós dois. Sugeri que fizéssemos uma reportagem sobre a prostituição na Rua Augusta. Lívia gostou da idéia.

A Rua Augusta é um ponto famoso da cidade de São Paulo. Ali estão os principais bares, boates e danceterias da noite paulistana. Todos os tipos de pessoas, de diversos estilos, circulam pelo local. A Augusta também é nacionalmente famosa por ser o mais diversificado ponto de prostituição do país. Garotas de programa de rua, de casas fechadas, de centros de massagem, de bares, travestis, ninfetas, velhas e transexuais são alguns dos muitos “atrativos” do lugar. Quem conhece a Rua Augusta, mesmo que de passagem, pode dispensar as minhas explicações. E a quem não conhece, desafio o uso da imaginação, pois apenas ela pode impor limites aos tipos que se encontra por lá.

Lívia e eu nos encontramos no cruzamento entre a Rua Augusta e a Avenida Paulista. Não tínhamos bolado um plano, e não tínhamos certeza de se poderíamos entrar nos prostíbulos para entrevistar as garotas. Mas resolvemos tentar assim mesmo.

Fomos bem recebidos logo no primeiro. Um homem de terno escuro estava parado à porta, e convidava de um jeito bastante peculiar, os rapazes que passavam pela calçada a entrar.

- Venham! Aqui tem bucetada na cara sem dó nem piedade!

Lívia quase deu a meia-volta. Ela mal podia respirar, de tanto que ria. Segurei minha companheira pelo braço, e, também rindo, entrei no estabelecimento.

O bar era escuro, com fracas luzes vermelhas. Uma música horrível tocava no jukebox, e uma garota seminua dançava em volta de uma barra de ferro. Era começo de expediente, então poucos clientes estavam sentados nos bancos ao redor do balcão de madeira lustrosa. Ouvimos gemidos, e percebemos que vinham de uma televisão instalada no alto do bar, onde um filme pornô mostrava um casal em uma posição que, pra mim, era no mínimo desconfortável. Lívia parecia estranhamente deslocada, com sua aparência de boa moça.

- Será que não vão me confundir? – sussurrou sorrateiramente.

- Pode ter certeza que não – eu disse, com meio sorriso.

Ela usava uma bata, jeans e sapatilhas de plástico. Seu rosto era cuidadosamente maquiado e os cabelos lisos e sedosos. Ela definitivamente parecia a filha bem cuidada de uma mãe coruja.

As moças que dançavam e desfilavam pelo bar eram bonitas, mas vulgares. As que tinham roupas vestiam peças curtas e decotadas, o realmente valorizava sua voraz sensualidade. Mesmo para um homem como eu, era um pouco constrangedor caminhar por ali para fazer um trabalho de faculdade. Nos aproximamos da garota que parecia menos “ocupada”, e nos apresentamos como repórteres de um site qualquer. Lívia levou sua pequena máquina fotográfica digital, mas ficamos receosos de usá-la ali dentro. Ao invés disso, pedimos para falar com o responsável pela casa. A garota sumiu por uma porta atrás do balcão, e, minutos depois, voltou acompanhada de uma mulher com aspecto de dona-de-casa. A cafetina nos cumprimentou amigavelmente, nos convidando a sentar. Escolhemos uma das mesinhas espalhadas pelo local, mais ao canto. Os clientes começavam a encher o bar, e lançavam olhares furtivos a nós. Aposto que imaginavam coisas do tipo: “hum... um casalzinho de jovens pervertidos”, ou pior. Procurei não prestar atenção aos olhares. Lívia estava realmente envergonhada.

Perguntamos sobre a prostituição, sobre as garotas que trabalhavam ali e seu dia a dia. A cafetina foi simpática, e escolheu a menina mais extrovertida para conversar conosco. A garota falou bastante, e tivemos muitas revelações sobre aquela profissão, coisas que não imaginávamos. Saímos empolgados do bar, e fomos a outros bares. Estávamos tão felizes com o sucesso de nossa empreitada, que entrevistamos até um travesti, que fazia ponto em uma esquina. É claro que só soubemos que se tratava de um travesti quando ouvimos sua voz, já que o cara se passaria facilmente por uma linda colegial.

Na semana seguinte, quando Lívia e eu apresentamos o texto da reportagem ao professor Zamagna, ele ficou bastante impressionado. Nenhum dos alunos havia tomado tamanha iniciativa, de realmente ir à apuração dos fatos, principalmente no fim de semana e na Rua Augusta. Ganhamos um dez pelo trabalho, e ainda mais credibilidade com o professor. Agora Zamagna nos parava nos corredores, nos horários entre as aulas, para conversar sobre reportagens interessantes e bons livros extra-acadêmicos. Ele nos ensinou a cultivar boas fontes e não ter medo dos entrevistados, o que foi realmente útil. Ele também nos forçou a aprender como escrever rápido e sob diferenciadas circunstâncias, para que entendêssemos o trabalho do jornalista em uma redação de um impresso diário.

Para facilitar minha ida à faculdade, mudei-me para Mogi das Cruzes, a cidade em que nasci, mas que estranhamente nunca havia morado pra valer. Mogi fica mais perto da capital, e a viagem de trem, ainda que demorada, custava dois reais e cinqüenta e cinco centavos, dez reais mais barato que a passagem do ônibus de Atibaia. Com isso, eu economizava vinte reais por dia, o que era muito, dado o meu baixo salário como teleatendente. Passei a trabalhar em São Paulo, com a mesma profissão. Aos sábados, freqüentava um bar de jazz, por ironia, na Rua Augusta, ou um outro bar, que tocava música brasileira, em Mogi mesmo. Como meus amigos moravam em Atibaia ou Ribeirão Preto, e os colegas da faculdade tinham as próprias atividades a exercer nos sábados à noite, eu costumava sair sozinho. O passeio era sempre o mesmo: eu levava um livro qualquer, me sentava em uma mesa distante, de preferência na área externa do bar, para poder fumar, pedia uma cerveja e ficava bebericando lentamente, ouvindo a música enquanto lia meu livro. Foi assim que tive minha grande oportunidade.

Eu estava no bar de Mogi, sentado sozinho em uma das mesas de aço, lendo o livro de crônicas do Bob Dylan e fumando meus cigarros Hollywood vermelhos. A banda tocava qualquer canção de Vanessa da Mata, e o bar estava razoavelmente cheio. Dava pra ver através do vidro fosco o garçom correndo com a bandeja entre as mesas. Em uma mesa próxima à minha, três garotas conversavam e riam abertamente. Eram bonitas, mas eu estava entretido com meu livro. Uma delas se levantou, veio até a minha mesa e ficou parada, olhando pra mim. Eu levantei os olhos do livro.

- Está lendo Bob Dylan? – perguntou a garota, japonesa, sorrindo. “Não, estou namorando com a garçonete, por osmose”, tive vontade de responder, mas é claro que fui bastante educado, já que a garota era bonita e tinha tomado a iniciativa.

- Pois é – eu disse. – Você gosta?

- Não – ela respondeu, e as amigas riram na outra mesa – Mas é que achei estranho alguém vir sozinho ao bar pra tomar uma cerveja e ler um livro.

Eu sorri.

- Gosto de fazer isso.

- Vem sentar com a gente!

Não pensei duas vezes. Levantei-me e peguei minha garrafa. Sentei entre as duas mais bonitas da mesa, uma moça com cabelos castanhos e pele branquíssima, e uma loira. Elas se apresentaram. A japonesa se chamava Juliana, a branca era a Lívia (“outra Lívia em minha vida”, pensei), e a loira era Mariana. Ou Débora. Não me lembro. O que importa é que, com alguns minutos de conversa, descobri que as três eram jornalistas formadas e trabalhavam como repórteres em um dos principais jornais da cidade. Fiquei impressionado com minha sorte.

- Sou estudante de jornalismo! – exclamei, infantilmente. As três riram.

- Não faça isso com a sua vida! – disse Lívia. – Você vai se arrepender...

Não sei se ela estava brincando, mas as amigas riram ainda mais. Elas já deviam estar um pouco bêbadas. Passamos o resto da noite discutindo se ainda valia a pena ser jornalista nos dias de hoje, mesmo com a queda do diploma e tudo o mais. Trocamos os números de telefone, e eu fui embora, estranhamente satisfeito. Estranhamente porque, geralmente, se eu conhecesse garotas bonitas como aquelas em uma noite qualquer, eu deveria pelo menos tentar algo. Não aconteceu isso desta vez, mas mesmo assim me senti bem.

Lívia era a que mais combinava comigo. Os gostos e idéias eram praticamente iguais, inclusive para a música. Além disso, era a mais bonita. Mas foi para a Juliana que eu liguei no dia seguinte, e continuei ligando a semana inteira. Isso porque ela pareceu mais receptiva à idéia de tentar um estágio para mim no jornal em que trabalhava. Combinamos de sair no fim de semana seguinte, e ela deu a notícia:

- Não consegui nada.

Fiquei desapontado. Sempre conto com a idéia de que as coincidências acontecem por motivos benéficos, como se o universo conspirasse ao nosso favor, e ser abordado por três jornalistas em um bar, quando se é estudante de jornalismo e nunca se teve contato direto com um profissional atuante, pra mime uma dessas coincidências positivas. Portanto, eu tinha quase certeza de que conseguiria o trabalho ainda naquele mês. Mas Juliana continuou:

- Eles não estão contratando ninguém. Período difícil. Mas falei de você para uma amiga.

Ela me levou para a mesa em que estava sentada com as colegas, no fundo do bar, e me apresentou a outra garota, uma jovem com aspecto de hippie, cabelos cacheados e armados, que faziam com que tivesse uma beleza ainda mais atraente, uma coisa meio diferente.

- Esta é a Ludmila – disse Juliana. – Ela é subeditora em nosso concorrente.

As duas riram, e Ludmila apertou a minha mão. Conversamos muito, enquanto bebíamos cerveja e fumávamos. Discutimos sobre o conservadorismo do Estadão e as repentinas mudanças da Folha de São Paulo. Fali sobre a concisão nos textos, e como aquilo me desagradava. A opinião de Ludmila era completamente diferente. Ela disse que era por causa de seu cargo como subeditora. Assim como Juliana, ela me prometeu tentar algo em seu jornal. Como não havia dado certo com a primeira, fiquei um pouco desiludido, e não depositei esperanças. Pra mim, ela não havia guardado nem o meu nome. Eu estava errado.

No dia seguinte, meu celular tocou cedo.

- Guilherme? – era a voz de Ludmila.

- Sim – eu respondi, impressionado pela ligação. Cheguei a pensar que ela havia se interessado por mim, ainda que não tivesse demonstrado nada na noite anterior.

- Lembra daquele estágio que falei que ia tentar pra você?

- Sim – disse novamente, já com raiva de mim mesmo, por não conseguir desenvolver uma conversa que passasse dos monossílabos.

- Venha ao jornal na quarta-feira, às nove. Você fará um teste.

Não pude conter a alegria e fiz meu tradicional “youppie!”.

Os dois dias que faltavam para a quarta-feira foram de pura ansiedade. Mal pude dormir, até que o dia chegou. Era a minha grande chance.

Arrumei-me bem, com minha melhor camiseta e meu jeans menos roto. Minha barba estava enorme, mas como fazia parte de minha promessa, que é assunto para um outro capítulo, não a tirei. Pedi informações aos taxistas do centro da cidade, pois não fazia idéia de onde ficava o jornal. Peguei o ônibus e consegui chegar, com uns quinze minutos de atraso. Como diria um amigo, “eu sempre chego atrasado, quando chego”.

A redação estava vazia, exceto por uma ou duas pessoas ocupadas em seus computadores. Eu nunca havia entrado em um jornal, e fiquei reparando em volta. Era um espaço amplo, com muitas mesas e computadores. Pouco diferia do local onde eu trabalhava como teleatendente até duas semanas antes, quando pedi demissão. Procurei por Ludmila, mas ela não estava. A mulher que digitava em um dos computadores do fundo da redação se levantou.

- Você é o Guilherme?

- Sou sim – falei, quase inaudível. É incrível o modo como fico sem voz quando estou nervoso. É como se as palavras travassem na garganta. Pigarreei, limpando a garganta, e repeti. – Sim, sou eu.

- Sou a Cristina – disse a mulher. – A Ludmila avisou que você viria...

- Onde ela está? – cortei, sem querer.

- Ela entra à tarde, para a edição – Cristina pareceu não notar minha falta de educação. – Certo. Vamos começar?

Ela me levou até um dos computadores, ligou e começou a explicar.

- Aqui ficam as pautas do dia – ela apontou para o ícone do Word em uma das pastas. – E aqui está a sua pauta. Você pode pegar um fotógrafo e um motorista e ir pra rua, pois já está atrasado.

Fiquei travado na cadeira. Eu nunca havia sequer visto uma pauta de verdade, sem contar com as pautas que o professor Zamagna mostrara nas aulas de Redação Jornalística, quanto mais saído para fazer uma reportagem, com fotógrafo e tudo. Quando a Ludmila disse por telefone que eu seria testado, pensei que eles me dariam um texto para escrever e analisariam a qualidade da minha escrita. Mas não. Eu estava ali, em frente a uma pauta com o meu nome, e já estava atrasado. Minha cabeça fervilhava de perguntas e medos, eu tremia, mas tudo o que consegui dizer foi:

- Tá bom.

Levantei-me, fui até a mesa dos fotógrafos e perguntei quem iria comigo. Um homem com seus trinta e tantos anos, mais ou menos gordo, com a barba por fazer e com um estranho e jovial penteado de cabelos lisos e louros, longos e caindo sobre o rosto, se levantou.

- Daniel – se apresentou. – Não se preocupe, eu lhe ajudo.

Por qualquer motivo, eu sabia que podia confiar naquele cara. Um maço de Marlboro praticamente saltava de seu bolso, e a pesada câmera estava pendurada pela alça em seu pescoço. Ele me levou ao pátio do jornal e chamou um dos motoristas, um senhor com bigode e cabelos brancos. Seu nome era Benedito, mas era chamado de Seu Dito. Entramos no carro, um Gol prateado com os adesivos com o nome do jornal. O que mais chamava a atenção eram os dizeres “Reportagem”, no vidro de trás. Eu tinha vontade de rir o tempo todo. Sentei-me no banco de trás, com o vidro aberto e o braço pra fora. Pode parecer estranho, mas meu maior desejo naquele momento era que minha mãe me visse.

Daniel, de forma educada, perguntou algumas coisas sobre mim. Eu sabia que ele estava apenas tentando acabar com a minha tensão, mas me senti muito grato por isso. Falei sobre a faculdade e sobre minha preocupação em não saber o que fazer ali.

- Fique tranqüilo – ele disse. – É mais fácil do que parece.

Chegamos ao local da reportagem. Minha pauta era muito sucinta, nada parecida com aquelas folhas extensas que o professor Zamagna mostrara em aula. Dizia pouquíssimo sobre o que eu deveria fazer. Era mais ou menos assim:

“Guilherme: Simulação de incêndio. O Corpo de Bombeiros fará uma simulação de incêndio na escola Dona Placidina, no centro. Acompanhe e veja o desenrolar. Fale com o comandante e com os alunos”.

A rua havia sido fechada para a simulação. Um caminhão do Corpo de Bombeiros estava estacionado em frente à escola, e os alunos estavam agrupados na quadra de esportes. Os bombeiros usavam os trajes de combate ao fogo.

- A concorrência já está aí – disse Daniel, apontando para o carro do jornal concorrente, enquanto Seu Dito estacionava. Descemos, e tamanho foi meu alívio em ver quem estava ali, que sorri. Lívia conversava com o fotógrafo de seu jornal.

- Guilherme! – ela disse, e veio em minha direção. Eu não sabia se podia confraternizar com o concorrente, então lancei um olhar furtivo ao Daniel. Ele ria, enquanto fazia qualquer piada com o fotógrafo de Lívia. Interpretei aquilo como um sinal verde. Cumprimentei a Lívia.

- Pelo amor de Deus, me ajuda! – eu disse, sorrindo.

- Que bom que a Ludi conseguiu o estágio pra você! – ela falou, também sorrindo. – Vamos, eu te ajudo.

Praticamente imitei o que ela fazia e perguntava. Fiquei admirado com sua eloqüência e domínio da atividade, e tentei parecer à vontade. Entrevistamos o comandante, funcionários da escola e os alunos que participaram da simulação. Quando nos despedimos, Lívia me desejou boa sorte e disse que estava à disposição, caso precisasse de ajuda. Agradeci muito, e fui embora com Daniel e Seu Dito, para cumprir as demais pautas.

Eu estava realmente nervoso. Minhas mãos tremiam, e mesmo estando frio, eu suava. Entrei na redação silenciosamente. Sentei-me ao computador em que Cristina havia me mostrado a pauta, e fiquei olhando para a tela em branco. Um voz me tirou a concentração.

- Você está sentado na mesa da Noêmia.

Virei o corpo e quase torci o pescoço. Uma garota morena de cabelos alisados sorria pra mim.

- Estou brincando – ela disse – A Noêmia está de férias. Você está fazendo um teste?

- Sim – respondi, sentindo que os monossílabos voltavam.

- Sou Jamile. – ela disse, e eu disse meu nome. – Boa sorte.

Jamile voltou ao trabalho, e eu fiz o mesmo. Havia apurado material em três pautas diferentes, e não sabia por onde começar. Resolvi começar pelo começo. O nervosismo era tanto, que terminei os três textos em meia hora. Salvei no local em que Jamile me orientou, assustada pela velocidade em que havia escrito.

- E agora? – eu perguntei, aflito.

- Agora avisa que terminou e vá embora – disse Jamile.

Levantei-me e fui à mesa indicada por Jamile. A mesa do chefe, Márcio Siqueira. Um homem relativamente novo, com os cabelos bem penteados e o terno aparentemente feito sob medida. Ele falava ao telefone. Esperei, e sentei-me na cadeira em frente à sua mesa. Ele apertou minha mão, e sorriu.

- E então? – disse.

- Bom, é... – gaguejei. Apesar disso, sua aparência me passava confiança. – Terminei os textos.

Márcio olhou para o relógio.

- A que horas entrou? – perguntou, com o cenho franzido.

- Às nove – eu disse. E completei – Nove e quinze, pois não sabia o endereço, e...

- Mas faz menos de uma hora que voltou da apuração, certo? – ele me cortou.

- Sim...

- Deixe-me ler isso – ele abriu os textos na tela de seu computador. Márcio leu silenciosamente aos três textos, sem mudar a feição. Eu queria enfiar a cabeça em um buraco, sair correndo, ou chorar. Mas fiquei quieto.

- Certo – ele disse. – Volte amanhã, à mesma hora.

E foi só. Me levantei, atônito, e fui embora. No dia seguinte, fui bem cedo à banca, comprei o jornal, e sorri. Ali, na página nove, com uma foto pequena no alto da página e um grande anúncio de uma loja de móveis, estava a minha reportagem sobre a simulação de incêndio. Li e reli. A edição mudara apenas o título. O texto estava praticamente intocado. Sorri para o jornaleiro, e corri para o jornal.

Na redação, a conversa com Márcio, após as apurações do dia, se repetiu. Ele leu os textos e balançou a cabeça afirmativamente.

- O pessoal daqui gostou bastante do seu modo de escrever – ele disse, como se falasse do tempo. Eu quase explodi de alegria, mas continuava tenso. O teste era de dois dias, e aquele era o momento decisivo.

- O salário é baixo – ele começou, e eu abri o sorriso. Senti que ia chorar, então me segurei. – E o trabalho é pesado.

- Estou disposto a trabalhar de graça – eu falei – Quero aprender.

- Pois bem – Márcio se levantou, ainda educadamente sério – Não precisa trabalhar de graça. Bem vindo ao Mogi News.

Me senti como a Giselda, com a mensagem ao vivo. Sabia que meu rosto estava queimando e minhas orelhas deviam estar vermelhas. Deu vontade de chorar, mas era alegria. Eu só conseguia rir. Apertei a mão de Márcio e saí, quase saltitando.

No jornal, embaixo do título da reportagem, meu nome estava publicado:

“Guilherme Peace, da reportagem local”.

E foi assim que começou.